PREFÁCIO
A proteção de dados, considerada por muitos – com razão – um dos temas mais desafiantes dessa quadra histórica, mereceu nos últimos anos atenção crescente, devido à constatação sobre a onipresença da internet e da circulação de dados pessoais nas mais variadas dimensões da vida de relações, tanto entre particulares, quanto nas interações entre o indivíduo e o Estado. Atualmente, ter acesso ou controlar dados pessoais representa uma dimensão real de poder no universo das relações sociais e jurídicas, não apenas no tocante à dimensão mais evidente da privacidade, mas também sobre direitos fundamentais de liberdade e igualdade. Daí porque a disciplina da proteção dos dados pessoais não delimita apenas um dever ou restrição sobre o acesso, mas à própria utilização (o tratamento), que tanto não pode restringir o acesso a direitos pelo titular (e.g., acesso ao contrato; acesso a serviços), quanto observa a proibição da discriminação injusta.
Isso não afasta a noção de dado pessoal como um ativo na sociedade da informação, e a necessidade de regular-se esse “mercado de dados” e sua dimensão econômica, o que se dá nos domínios do mercado de consumo e, por conseguinte, merecerá atenção e disciplina pelo direito do consumidor em conjunto com a legislação própria de proteção de dados.
Daí a oportunidade da obra coordenada por alguns dos maiores nomes do direito do consumidor brasileiro, Claudia Lima Marques, Leonardo Bessa e Guilherme Magalhães Martins, e com a organização de Fernando Rodrigues Martins, todos professores destacados que dispensam outras apresentações. E que reúnem em torno de si, outros tantos juristas consumados e novos talentos, ocupando-se de diversos aspectos da proteção de dados na perspectiva do direito do consumidor.
A relevância da obra, só por isso, já estaria amplamente justificada. Porém, merece registro o fato de que todos se reúnem para discutir essas intrincadas questões, prestando justa homenagem a Danilo Doneda, que, tendo nos deixado jovem, em 2022, é sem favor, a principal referência no tema, ao qual dedicou toda sua destacada vida acadêmica. Permito-me, assim, no prefácio dessa obra de homenagem ao Danilo, alguns apontamentos sobre diferentes dimensões do homenageado.
Primeiro, o jurista. O tratamento dos dados pessoais passa a ser considerado como tema de relevo para o direito brasileiro, a partir da conhecida tese de doutoramento de Danilo, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, publicada na sua versão comercial, em 2006, sob o título expressivo: “Da privacidade à proteção de dados pessoais”.
Ali já indicava que o tema da proteção de dados, ao mesmo tempo em que se associava à proteção da privacidade na nascente sociedade da informação, destacava-se por ir além, observando a necessidade de especialização para construção de uma tutela in concreto, dessa dimensão de exclusividade da pessoa humana. Ordenou ali, um modelo doutrinário que inspira até hoje os estudiosos do tema, no Brasil e em outros países com o qual travou diálogos substanciais. Por ocasião da pesquisa para a tese, esteve na Itália, onde ganhou proximidade com o mestre italiano Stefano Rodotà, introduzido no debate jurídico brasileiro pela destacada Escola do Rio de Janeiro, de direito civil. Desse encontro afirmou-se o reconhecimento intelectual e intensa colaboração com inúmeros frutos até hoje colhidos.
Segundo, o articulador. Os estudos acadêmicos não encerraram a contribuição de Danilo Doneda para o direito brasileiro. Seu estilo agregador, sua preocupação típica de Professor, querendo se fazer entender, aliaram-se ao desejo de intervenção efetiva na realidade social, colhendo contribuições mundo afora e formulando, junto de outros colegas, um anteprojeto de lei geral de proteção de dados, encaminhado afinal pelo Poder
Executivo ao Congresso Nacional e de onde resultou a legislação ora em vigor. Não foi, na altura, apenas quem redigiu (o que, por si só, já seria contribuição extraordinária), mas empenhou-se pessoalmente, por longo tempo, nos debates parlamentares, com a sociedade civil e os agentes econômicos, afastando objeções, construindo consensos e contribuindo, afinal, para a aprovação da lei. O estilo paciente e agregador de Danilo, ao lado do profundo preparo técnico, o tornaram o principal interlocutor sobre o tema da proteção de dados, reunindo em torno de si os círculos político, acadêmico e empresarial, que à unanimidade o reconheceram como timoneiro dessa grande obra, tanto na formulação da lei, quanto na sua implementação.
Não por acaso, esse reconhecimento o colocou como protagonista de todas as principais discussões sobre os desafios da regulação jurídica das novas tecnologias no Brasil, e ele tomou a si a tarefa, como foi o caso da disciplina da inteligência artificial, em relação a qual participou dos trabalhos iniciais, até quando foi colhido pela enfermidade que lamentavelmente o levou. Nesse particular a discrição de Danilo e sua disposição para a vida fez com que apenas nos instantes finais quando o físico não acompanhou mais o espírito, tenha se retirado dos inúmeros debates e colóquios em que sua intervenção era aguardada e, como regra, acatada.
Terceiro, o humanista. A delicadeza do gesto e da palavra, a vontade férrea de sempre ajudar quem queria chegar mais longe nos temas sob seu domínio, nunca esconderam o jurista e cidadão de ideias fortes, não apenas sobre os temas do Direito, mas sobre a cultura, a sociedade e sua comunidade política, sempre em favor da pessoa humana, do pluralismo, do respeito aos direitos humanos e da tolerância. Sua obra jurídica revela, afinal, sua visão de mundo e do compromisso ético com a transformação, para melhor, da vida comunitária.
Há uma passagem de Thomas Mann, no seu conhecido Buddenbrooks, que se inicia com a expressiva afirmação: “Trago em mim o germe, o início, a possibilidade para todas as capacidades e confirmações do mundo.” Noutro contexto, exprime o que temos de Danilo Doneda. Nos domínios da tecnologia e na sua relação com o humano, explorou as possibilidades para aliar suas conquistas e vantagens, prevenindo riscos. Preocupou-se com os novos vulneráveis e os excluídos do mundo digital; enxergou adiante, e até onde conseguiu ver, atuou para valorizar e proteger a pessoa humana. Não surpreende, pois, que se dirijam a ele inúmeras e justas homenagens. Servem como um bom exemplo, quando em muitas dimensões eles rareiam. Pois assim cumpre dizer que é de excelência a contribuição desses inúmeros juristas aqui reunidos para refletir sobre os desafios da defesa do consumidor em relação à proteção de dados, em torno do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, entidade a qual também pertenceu – e onde se destacou – o homenageado. Resta-me cumprimentar pela iniciativa e recomendar vivamente a leitura das inúmeras reflexões originais que integram a obra.
Coimbra, outubro de 2023.
Bruno Miragem
Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Associado Convidado da Universidade de Coimbra.
APRESENTAÇÃO
Esta obra é uma belíssima homenagem ao querido professor Danilo Doneda, um dos maiores juristas brasileiros da atualidade, que nos deixou um legado ímpar na área de direito e tecnologia. É também uma excelente iniciativa para relembrar o compromisso de Danilo exatamente por meio do que marcou a sua vida: a pesquisa e a produção acadêmica de alto nível.
Danilo colaborou ativamente para a edição da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) no Brasil, desde a redação das suas primeiras versões, passando pelo diálogo multisetorial com diversos atores até a contribuição com o debate político no Congresso Nacional. Danilo também participou das principais discussões sobre o Marco Civil da Internet e fez parte da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados que elaborou a LGPD Penal, e da Comissão de Juristas do Senado Federal responsável por auxiliar na regulação da inteligência artificial no Brasil. É impossível estudar a regulação de novas tecnologias no país sem passar pelos seus trabalhos, escritos e entrevistas.
Danilo tinha a convicção sobre a necessidade e ao mesmo tempo sobre os desafios de regular a tecnologia, partindo de uma concepção de que os direitos nascem quando são necessários, alinhado com a perspectiva de Norberto Bobbio. Afirmava constantemente que a rápida evolução tecnológica precisa ser acompanhada de um direito capaz de se transformar e de inovar, protegendo os indivíduos, as coletividades e criando segurança jurídica para a atuação das empresas em novos contextos econômico-sociais.
Mais do que sua imensurável contribuição acadêmica e profissional, Danilo deixou centenas de pesquisadores (que tinham nele a figura de um mentor) com a árdua missão de fazer jus ao seu legado e dar continuidade aos debates acadêmicos sobre direito e tecnologia com uma perspectiva humanista, que era a sua marca.
Por isso, destaca-se a importância da presente obra, coordenada por profissionais reconhecidos na seara do Direito do Consumidor e do Direito Privado no país. Danilo soube realizar um bonito diálogo entre defesa do consumidor e proteção de dados, tendo colaborado com o projeto de elaboração da LGPD desde o início no Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), órgão que iniciou os debates sobre o ante-projeto de lei de proteção de dados. Além disso, dedicou-se a muitas discussões sobre asrelações de consumo na Internet e intersecções entre a LGPD e o Código de Defesa doConsumidor (CDC), que hoje se multiplicaram em centenas de pesquisas, dissertações e teses de doutorado, tanto no mestrado quanto no doutorado do IDP, faculdade em que era professor, como em outros programas de pós-graduação. O seu trabalho e o seu compromisso com os direitos fundamentais eram inspiradores e tiveram uma influência marcante na produção acadêmica brasileira. A presente obra aborda os principais debates sobre as relações de consumo permeadas por novas tecnologias, incluindo questões relacionadas ao setor de crédito, comércio eletrônico, turismo, telemarketing, saúde, reflexões sobre o uso de sistemas de inteligência artificial, riscos da discriminação algorítmica, impacto de deepfakes, agravamento da hipervulnerabilidade do consumidor, bem como a evolução jurisprudencial sobre a relação entre a proteção do consumidor e a LGPD, entre outros temas interessantes.
A obra é, portanto, essencial para acadêmicos, pesquisadores e profissionais da área, permitindo uma leitura enriquecedora e com um olhar atual sobre os grandes desafios para o direito em face das inovações tecnológicas. Que o legado do querido e eterno professor Danilo Doneda possa nos inspirar para a formulação de soluções jurídicas inovadoras, democráticas e plurais, contribuindo para a efetivação dos direitos fundamentais em uma sociedade marcada pela revolução da comunicação e da informação.
Brasília, 25 de outubro de 2023.
Laura Schertel Mendes
Professora de Direito Civil da Universidade de Brasília (UnB), Diretora do Centro de Direito, Internet e Sociedade do IDP (CEDIS/IDP), pesquisadora de pós-doutorado da Universidade Goethe de Frankfurt am Main.