Influência de professores italianos na formação de Danilo Doneda

A construção do pensamento de Danilo Doneda foi fortemente influenciada pelo contato com professores e pesquisadores italianos que acompanharam seu percurso de formação. Esse artigo tem o objetivo de resgatar algumas dessas influências e de como elas repercutiram na sua produção.

O primeiro contato direto de Doneda com professores italianos foi em 1999, entre o fim do mestrado e início do doutorado em Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O professor Vito Rizzo, da Università di Perugia, veio ao Brasil para um congresso no Rio de Janeiro e Doneda ficou responsável em levar o professor e sua esposa, Irma, para conhecer a cidade. Em 2002, quando Doneda foi fazer doutorado-sanduíche na Scuola di Specializzazione di Diritto Civile da Università di Camerino, foi recebido pelo professor Rizzo. Por diversos domingos, os almoços foram na residência do professor em Fiuminata, aos pés das montanhas de Alte Valli del Potenza e Esino. Quando nasceu a primeira filha de Doneda, Rizzo o presenteou com “Grammatiche della creazione”, de George Steiner, que se tornou um dos seus livros preferidos.

Um dos trechos sublinhados acompanhou suas reflexões por toda sua vida.

De que maneira a liberdade de ser ou de não ser desempenha um papel no processo criativo? Toda obra-prima comunica ao artista um sentimento de derrota. Em uma perfeição aparente, mas espúria, atrofia e deixa para trás incompleta as ilimitadas intuições de laboratório. Na criação, e essa poderia de fato ser uma diferença fundamental com a invenção, as soluções são miseráveis em relação à riqueza do problema. (…) No campo da pintura, em especial, as tecnologias radiográficas modernas revelaram os extratos sobrepostos, a arqueologia que se move na tela. As alterações repetidas do gesto e da postura, os membros redesenhados ou omitidos, as mudanças no foco e na iluminação que representam os diversos estágios das possibilidades que estão embaixo, podemos dizer, da superfície de um Tiziano, de um Rembrandt ou de um Manet, podem ser vistos e reconstruídos na sua gênese. Aliás, essas indiscrições científico-crítica, como a que diz respeito as primeiras versões e os passos apagados de um texto literário, levanta problemas de legitimidade, de tato do espírito. Estamos realmente autorizados a penetrar e a trazer para a luz da interpretação aqueles estágios de monólogo criativo do pintor, de rejeições de composição que ele escolheu (literalmente) de recobrir, de obliterar para si mesmo e para o espectador? Onde começa o voyeurismo? (STEINER, 2003, p. 126)

Das discussões jurídicas com Rizzo, especialmente nos almoços dominicais, Doneda aperfeiçoou suas reflexões sobre a escola de pensamento do professor Pietro Perlingieri. Rizzo dedicou suas pesquisas ao problema da interpretação do contrato e, mais especificamente, do direito do consumidor e a tutela dos consumidores. Desses debates, acompanhados por grappa ou limoncello após a refeição, Doneda fortaleceu a convicção sobre a tutela dos direitos de quem está do lado oposto ao poder econômico.

No seu trabalho como coordenador na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça do Brasil se refletem as questões que Rizzo sempre considerou essenciais, como a tutela dos dados pessoais, a proteção do consumidor na era digital, o direito à diversidade como expressão do direito à identidade pessoal, a tutela além dos aspectos jurídicos, a autodeterminação das partes, a tutela dos sujeitos vulneráveis, a identidade, seus direitos fundamentais e o dever de solidariedade. Aprofundar esses temas em debates e diálogos trouxe para Doneda uma clareza conceitual sobre a identidade pessoal, métodos e direitos da personalidade que acompanharam toda sua trajetória. A obra de Rizzo sempre apresentou uma relação dialética entre a doutrina e jurisprudência, especialmente na questão de proteção dos consumidores.

“Certamente, algumas particularidades históricas podem apontar os motivos dessa determinada configuração da matéria no Brasil; como o pode, até certo ponto, o próprio perfil social do país – que, dada a existência de problemas estruturais de maior gravidade, poderia sugerir que a proteção de dados pessoais seja, ao menos em termos quantitativos, uma demanda de menor apelo.” (DONEDA, 2019, p. 45)

Em Camerino, Doneda fez parte também do grupo de alunos e pesquisadores do professor Alberto Filippi, titular das disciplinas História e Instituições da América Latina e Instituições Políticas Comparadas na faculdade de Ciências Políticas. Depois das aulas, o professor convidava seus “discípulos para jantar no Ristorante e Pizzeria Apogeo, no centro histórico da cidade. Nesses jantares, Doneda discutia a história da América Latina, o que iria influenciar muito o seu entendimento sobre as diversas questões do continente.

Filippi ressaltava os perigos da relação entre cultura e política, a questão da responsabilidade e do engajamento – ou do desengajamento – dos intelectuais, defendendo veementemente que a experiência europeia deveria nutrir o intelectual latino-americano para encontrar soluções para suas realidades locais. Doneda discutia sobre o fascismo e a democracia cristã no cenário político italiano e se afirmou sua paixão pelo fenômeno da resistência durante a Segunda Guerra, os partigiani. Nessa leitura, a Itália era uma república nascida da “resistência” e se defendia o racionalismo contra o “eclipse da memória, contra a mitificação celebrante do presente” (FILIPPI, 1999, p. 171)

Um dos livros que marcaram a fase da pesquisa na Itália foi a obra do professor Giovanni Buttarelli (1957-2019) que, como o professor Stefano Rodotà (1933-2017), se tornaria referência nos estudos de Doneda, ao indicar que a tutela da esfera privada parecia ineficaz diante dos desafios do desenvolvimento tecnológico. Professor e juiz, Buttarelli foi um especialista em direito das novas tecnologias, direito à privacidade e à proteção dos dados pessoais. Foi secretário-geral do Garante per la protezione dei dati personali italiano de 1997 a 2009.

Para Buttarelli, a proteção de dados representando uma “projeção” da pessoa humana parecia inadequada. O professor ressaltava a “consciência de que os dados pessoais não poderiam se transformar em mercadoria” (BUTTARELLI, 1997, p. XV) e insistia sobre a pluralidade dos instrumentos de tutela dos direitos e a necessidade de uma autoridade “independente” para garantir essa tutela. O tratamento de dados se desenvolveu no ordenamento italiano considerando os dados sensíveis, como os dados relacionados à saúde, processos judiciários, notícias jornalísticas, pessoas jurídicas e instituições públicas que dialogavam também com os fluxos de dados entre os países da União Europeia.

“A tutela da privacidade oferece ao indivíduo alguns instrumentos para reagir às intromissões ilícitas na vida privada. Em relação ao tratamento dos dados, porém, as garantias tradicionais não são eficazes, até porque a gestão dos sistemas informáticos e telemáticos explica reflexos que atravessam cada indivíduo e que atingem toda a coletividade.”  (BUTTARELLI, 1997, p. 489)

No seu período de pesquisa no Garante,  Doneda teve a oportunidade de discutir com Buttarelli questões práticas como as tarefas da agência em âmbito nacional, o registro dos tratamentos, as relações com outras autoridades, os códigos de conduta, as funções em âmbito comunitário e internacional. Dialogaram também sobre as sanções, como as penais, quais seriam as premissas, observando as omissões ou notificações infiéis, a coleta e o tratamento ilícito dos dados, a omissão da adoção de medidas de segurança, a não observação das medidas tomadas pela autoridade, assim como as sanções administrativas.

O convite para pesquisar na biblioteca do Garante della privacy partiu do professor Stefano Rodotà, presidente da agência e que foi professor do orientador de Doneda, professor Gustavo Tepedino. A proposta foi acenada durante entrevista (https://doneda.net/2017/06/23/entrevista-com-stefano-rodota/) em uma tarde na casa de Rodotà no Campo dei Fiori, em Roma, um pouco antes de um jogo do Brasil na Copa do Mundo de 2002.

Rodotà se tornou a principal referência no desenvolvimento do pensamento acadêmico e profissional de Doneda, influenciando também pessoalmente a sua trajetória. Em um dos sonhos que Doneda teve com ele, meses antes da sua morte, o professor pintava paisagens coloridas para dar de presente aos seus filhos. O brilho que Rodotà notou nos olhos curiosos e ávidos de Doneda fez com que o ex-deputado italiano, professor de Direito Civil da Sapienza Università di Roma, o acolhesse em Roma como uma semente que poderia propagar fora do território italiano suas ideias e reflexões. Os livros de Rodotà sempre estiveram nas estantes de Doneda desde então. Lidos e relidos.

“A privacidade, nas últimas décadas, passou a se relacionar com uma série de interesses e valores, o que modificou substancialmente o seu perfil. E talvez a mais importante dessas mudanças tenha sido essa apontada por Stefano Rodotà, de que o direito à privacidade não mais se estrutura em torno do eixo ‘pessoa-informação-segredo’, no paradigma da zero-relationship, mas sim no eixo ‘pessoa-informação-circulação-controle’.” (DONEDA, p. 41)

Foram mais de vinte anos de diálogos e reflexões sobre a privacidade entre o indivíduo e a coletividade, a circulação das informações e a proteção de dados, a privacidade e a construção da esfera privada. Para Rodotà, as tecnologias desafiavam o direito e exigiam novas leis, e foi por esse caminho que o pensamento de Doneda se desenvolveu.

A questão burguesa aparece como crucial para entender a realização das condições materiais para a satisfação da necessidade de intimidade que a proteção dos dados e a defesa da privacidade trazia. Mas, escondida atrás da defesa da privacidade, estaria a hostilidade a uma forte pressão fiscal e uma política de diminuição da diferença social, na qual a classe média seria a primeira a ser atingida (RODOTÀ, 1995, p. 25). Esses trechos sublinhados por Doneda demonstram a sua precoce preocupação com o fato de que a invocação da privacidade superava a questão individual para se transformar em aspecto coletivo. O grupo social ao qual pertence o indivíduo também deveria ser considerado pelo legislador.

“É quando se admite a máxima circulação das informações de conteúdo econômico que se deve consentir aos interessados exercitar um real poder de controle sobre a exatidão de tais informações, sobre os sujeitos que os usam e as modalidades da sua utilização.” (RODOTÀ, 1995, p.34)

Outro tema que chamou logo a atenção de Doneda foi a questão dos dados anônimos. Rodotà ressaltava que a coleta de dados anônimos poderia ser realizada de forma gravemente lesiva para o direito dos indivíduos, principalmente considerando minorias étnicas ou linguísticas. Assim como poderiam ser perigosas as consequências de uma decisão de política econômica fundamentada na análise de dados anônimos. Para Rodotà, deveria ser consentido aos interessados o acesso às suas informações para controlar a exatidão e, se houvesse, necessidade, ter o direito de pedir retificação.

“Parece óbvio que excluir o direito de acesso aos dados anônimos significa permanecer prisioneiro da velha lógica individualista e recusar aproveitar a ocasião oferecida pelo uso da tecnologia para permitir uma expansão das possibilidades de intervenção e de participação dos indivíduos e dos grupos, que seria o único caminho para impedir que, em presença de inovações tecnológicas tão profundas, as mudanças do poder são produzidas em apenas uma direção, a favor de grupos sempre mais restritos e de estruturas fechadas e centralizadas.” (RODOTÀ, 1995, p. 30)

Era o momento da redefinição do conceito de privacidade em uma “sociedade aberta” com direitos e interesses em conflito. Riccardo Sanchini era o bibliotecário que colocava em prática o projeto de Rodotà de criar um acervo sobre a cultura da privacidade e da proteção de dados. Doneda, na primavera e verão de 2004, era o monoutente da biblioteca do Garante. O professor Massimo Moretti, que mais tarde se transformaria em um amigo que compartilharia muitos momentos importantes, como nascimento de filhos, estudava História da Arte e estagiava na biblioteca. Sanchini e Moretti eram os companheiros de panini e café no Giolitti, às vezes uma insalata de riso em alguma trattoria por ali. Com eles, Doneda descansava das longas horas de pesquisa na biblioteca para discutir sobre política, arte e instituições. A informalidade dessas relações se equilibrava com a seriedade dos encontros com o professor Rodotà, especialmente nos almoços no La Rosetta, o famoso restaurante de peixe na via della Rosetta, nas proximidades de Montecitorio, um dos preferidos do professor.

Com Moretti, atualmente professor de História da Arte Moderna na Sapienza Università di Roma, Doneda caminhou pelas ruas de Roma aprofundando seus interesses em arte, discutindo o tema que desde então apaixonava Moretti, o estudo da obra de arte como instrumento de comunicação e representação das culturas dominantes, mas também da alteridade e das minorias, especialmente as religiosas. Entre tantos eventos que compartilharam, destaca-se que a ligação de Moretti com a Igreja Católica permitiu que Doneda levasse seus filhos – e outras crianças, incluindo os filhos de Morettti – em um encontro privado com o Papa Francisco, no Vaticano, em 2014.

Esse período na biblioteca foi um divisor de águas na carreira de Doneda. A tese estava bem desenvolvida após os anos de pesquisa em Camerino, mas a vivência dentro da agência italiana ofereceu os fundamentos para criar também no Brasil uma instituição de proteção aos cidadãos em relação aos seus dados pessoais.

O bibliotecário Sanchini dizia que refletir sobre a necessidade da “privacidade era uma ocasião preciosa para reforçar a autonomia da pessoa contra o Gestell econômico-tecnológico” (SANCHINI, 2004, p. 137). Ele falava sobre a sensibilidade na tutela da esfera privada e de como os indivíduos tinham ficado expostos e vulneráveis na “sociedade transparente”. A importância de Sanchini se deve muito também aos pontos de discordância entre a proposta de proteção que Doneda projetava e as ansiedades diante do poder das novas tecnologias que assustavam seu interlocutor. Para Doneda, a tecnologia não tinha valor negativo, nem mesmo diante dos obstáculos e desafios, era uma questão sempre de adaptação e planejamento em que o direito deveria se precaver e considerar como proteger os indivíduos.

Outra influência na formação de Doneda no período italiano foi o professor Guido Alpa, especialmente no tema da tutela dos consumidores, que marcou o seu período na Senacon e as propostas sobre proteção de dados e o consumo. Alpa ressalta que o debate sobre direitos do consumidor no seu país sofreu forte influência de questões ideológicas, econômicas e jurídicas, considerando critérios como a boa-fé e o comportamento leal das partes como premissas. (ALPA, 1998, p. 13)

Na discussão sobre a normativa de dados pessoais na Itália, Alpa realizou uma divisão em três pontos de reflexão: a leitura político-institucional, a leitura jusformalista e a leitura jusrealista. Essa sistematização do desenvolvimento da normativa no ambiente italiano colaborou para que Doneda tivesse uma visão mais abrangente do desenvolvimento filosófico do tema.

Na leitura político-institucional existia uma preocupação em defender a pessoa dos efeitos nocivos que derivam da aquisição e da utilização e circulação das informações. A tutela dos direitos da pessoa deveria lidar com as “exigências do mercado” e, por isso, a necessidade da criação de uma autoridade administrativa independente.

Na leitura jusformalista, era preciso interpretar e compreender o metabolismo das legislações, considerando a proteção da liberdade individual e pessoal, assim como a de imprensa, e a liberdade de iniciativa econômica e administração pública. Diante das transformações tecnológicas, as categorias jurídicas tradicionais nem sempre eram suficientes para exprimir a riqueza dos conteúdos, interesses e soluções e, portanto, as análises sobre a propriedade dos dados pessoais foram solicitando novas compreensões, como a que passou a entender a informação como um bem.

Na leitura jusrealista, era preciso considerar os interesses mercadológicos e os custos envolvidos na criação de mecanismos de proteção de a partir da análise dos problemas por setores de atividade, considerando as fases da construção jurídica da identidade individual, a criação dos bancos de dados e as definições de “dado pessoal” e “dado sensível”, como aspectos étnicos, convicções religiosas, opiniões políticas, saúde e sexualidade.

A partir dessas leituras, diálogos e confrontos, Doneda foi criando o seu arcabouço teórico que, somado às suas tantas outras referências, fez dele um dos mais importantes juristas e pesquisadores na área de proteção de dados no Brasil.

“O ordenamento jurídico brasileiro contempla a proteção da pessoa humana como o seu valor máximo e a privacidade como um direito fundamental.” (DONEDA, 2019, p. 44)

Referências

ALPA, GUIDO. La normativa sui dati personali. Modelli di lettura e problemi esegetici. Vincenzo Cuffaro, Vincenzo Ricciuto, Vincenzo Zeno-Zencovich (a cura di). Trattamento dei dati e tutela della persona. Milano: Giuffrè, 1998.

BUTTARELLI, GIOVANNI. Banche dati e tutela dela riservatezza. La privacy nella Società dell’Informazione. Milano: Giuffrè Editore, 1997.

DONEDA, DANILO. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei geral de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

FILIPPI, ALBERTO. “Per la biografia di um intellettuale euroamericano” (pp. 127-171) in Filippi, Alberto (a cura di). Ruggiero Romano. L’Italia, l’Europa, l’America. Studi e contributi in ocasione dela láurea honoris causa. Università di Camerino. Facoltà di Giurisprudenza. Istituto di Studi Storico-giuridici filosofici e politici, 1999.

MORETTI, MASSIMO; DI SIVO, MICHELE. Artisti in Tribunale (pp. 7-10). PORTA VIRTUTIS. Il processo a Federico Zuccari. Roma: Archivio di Stato di Roma e Sapienza – Università di Roma, 2020,.

RIZZO, VITO. Istituzioni di diritto civile, coordinato da P. Perlingieri, Napoli, 2001;

RODOTÀ, STEFANO. Tecnologie e diritti. Bologna: il Mulino,1995.

SANCHINI, RICCARDO (a cura di). VITTORIO MATHIEU, Privacy e dignità dell’uomo. Uma teoria dela persona. Torino: G. Giappichelli editore, 2004.

STEINER, GEORGE. Grammatiche della creazione. Milano: Garzanti Libri, 2003.

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